quinta-feira, 29 de abril de 2010

Viveu 79 anos num quarto de hospital

Agapito Pazos, um homem que viveu 79 anos num quarto de um hospital na localidade espanhola de Pontevedra - de onde só saiu 48 horas para ir ver o mar -, morreu no fim-de-semana, aos 82 anos.
Considerado o dono do quarto 415 e conhecido por todos os funcionários e por muitos dos doentes daquela unidade hospitalar, Agapito Pazos foi abandonado no hospital com apenas três anos, vivendo ali o resto da sua vida, até quase aos 80.
Com alguma incapacidade psíquica e com distrofia muscular nos membros inferiores, que o impediam de caminhar, Pazos só saiu do hospital uma vez em 77 anos: quando um contínuo o levou a ver o mar, nas Rias Baixas.
Nos anos 1930, quando ali chegou, o Hospital Provincial de Pontevedra era o único centro de beneficência que existia na localidade acabando por servir de casa para Agapito, que ao longo da sua vida partilhou o quarto com centenas de doentes.
Inicialmente sob responsabilidade do departamento de pediatria e, mais tarde, do de medicina interna, nunca conseguiu sequer uma família de acolhimento, apesar das repetidas tentativas dos responsáveis hospitalares.
O caso acabou por ficar ao cuidado da Fundação Sálvora, encarregada desde 1993 de gerir o caso de Agapito.
A longa permanência no hospital valeu-lhe, claro, alguns benefícios que outros doentes não tinham: recebia chocolate (a sua grande perdição) e tinha a cara virada para a janela.
Fernando Filgueira, um dos muitos médicos que acompanhou Agapito, recordou-o -- em declarações ao jornal Faro de Vigo -- como "alguém especial" que acabou até por ser o "encarregado de guardar as chaves dos medicamentos e dos armazéns".
"Eram luxos do menino mimado da casa. Se o tivéssemos mudado de quarto ou o tivéssemos levado para um lar teríamos tirado a sua vida", admite.
No quarto ajudava a controlar os outros doentes que entravam e saíam, avisando médicos e enfermeiros quando os via mal.
"Chegava a avisar-nos quando iam morrer. E em muitos casos acertou", recorda o médico, afirmando que há uns anos o próprio Agapito superou um cancro no estômago.
Nos últimos anos, "foi-se apagando pouco a pouco", mas ainda assim "tocou nas vidas de muita gente".
Motivo pelo que o seu funeral foi acompanhado por muita gente, inclusive do município onde o seu registo recordava a sua vida.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

VAI BARQUINHO, VAI

Vai barquinho, vai,
Rasgando as águas do rio,
Vai barquinho, vai,
Até te tornares num navio.

Vai barquinho, vai,
Espera-te o grande mar,
Vai barquinho, vai,
Continua a navegar.

Vai barquinho, vai,
Galga as ondas do mar,
Vai barquinho, vai,
Não temas naufragar.

Vai barquinho, vai,
Os ventos anunciam tempestade,
Vai barquinho, vai,
O teu mar é a sociedade.

Vai barquinho, vai,
A tempestade há-de acalmar,
Vai barquinho, vai,
Que nenhum ódio te faça encalhar.

Vai barquinho, vai,
Que nada te faça cessar,
Vai barquinho, vai,
A tua missão é amar.

Vai barquinho, vai,
Acalenta o meu sonho de criança,
Vai barquinho, vai,
Para que habite em nós a esperança.

(Américo Lisboa Azevedo, in "Para Além do Olhar")

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Notas Soltas 2

Segue o segundo “Notas Soltas” que são pequenos textos da minha autoria.

Vivemos num país que se diz desenvolvido. Para isso contribui em muito o facto de sermos um país em que o nível de escolaridade mínimo tem vindo a aumentar gradualmente, cifrando-se actualmente no nono ano, podendo passar essa fasquia para o décimo segundo, conforme intenções manifestadas pelo actual executivo.
Este facto vai acarretar um aumento de gastos por parte das famílias na angariação de material escolar para que esses alunos possam prosseguir os estudos.
O mais paradoxo deste facto é que as escolas expedem os manuais adoptados durante os primeiros três ou quatro meses civis para que as livrarias tenham capacidade de os porem à disposição dos encarregados de educação a tempo do início do novo ano lectivo.
Se existem alunos deficientes, tal como os alunos ditos “normais”, que não querem fazer nada e só andam nos estabelecimentos de ensino para não estarem em casa, ou que têm acesso às novas tecnologias, pode existir uma pequena fatia destes que tenham como única alternativa o uso de manuais em linguagem Braile.
Tendo presente este facto, não se compreende o porquê de alunos cegos ou de baixa visão, terem de esperar, muitas vezes meses, por manuais que lhes dêem acesso às matérias leccionadas.
Não seria mais racional que, quando se soubesse os manuais adoptados por uma escola, e sabendo previamente da existência deste tipo de alunos, estes estabelecimentos de ensino solicitassem apoio ao Ministério de Educação, com vista ao aceleramento deste processo, tendo em vista a entrega dos manuais até ao início do ano lectivo.

Adolfo Ribas

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Ser Deficiente...

Ser deficiente...
Não é ser deficiência física ou psicológica
É deficiência de ideias incessantemente
De raciocínios sem lógica.
Amar e ser amado por quem somos
Deficiências todos temos
De ideias e preconceitos
Todos humanos, todos com defeitos
Amar e ser amado
Lutar e ser lutador
Vencer a luta duma dor inesquecida.
Um amor verdadeiro
Uma inocência na deficiência
Lutadores e vencedores
Lutar contra o vencedor da partida
Mas vencedores da vida.
Conhecedores da sobrevivência
Todos lutadores
Contra a luta e contra as dores.
Um viver e renascer
Na luta vida vencer.

(Autor desconhecido)

sexta-feira, 2 de abril de 2010

O AMOR TUDO VENCE

A casa de pedra granítica lá estava imponente e austera no cimo do monte. As janelas abertas de par em par e o portão de ferro a ranger prolongadamente nos gonzos. Falta de óleo, falta de uso.
- Temos visitas. – anunciei.
- É o padre Fontes. – acrescentou Margarida que se apressara a abrir a porta.
- Posso entrar?
- É claro que sim, padre Fontes. A casa é sua. – acudi eu familiarmente.
- Como estão a ser essas núpcias?
- Boas. Marmelitos é uma terra de gente acolhedora e esta casa, apesar de bastante antiga, é excelente para os primeiros dias duma vida a dois. - informei com um sorriso.
- E não vos cansais de cá estar?
- Por mim ficava cá sempre. – atalhava Margarida.
- E eu também. – concordei.
- Estou espantado. – galhofou o padre Fontes, sorrindo de satisfação por nos ver felizes.
- Quer jantar connosco? – convidámos simultaneamente.
- Aceito de bom grado.
O padre Fontes é daqueles pastores que conhece cada uma das suas ovelhas pelo seu nome e as guia pelos caminhos da vida com abnegada dedicação e ardente ternura.
- E tendes passado por muitas aventuras? – quis ele saber.
- Algumas, algumas. – respondemos a uma voz.
- Ainda esta noite nos choveu na cama. – adicionei.
- E depois? – riu-se o padre Fontes.
- Tive de arrastar a cama. – queixou-se Margarida.
- E o mais engraçado é que assim que desviaste a cama o pingante cessou de cair. – pormenorizei.
- E a Fidélia que trouxe quatro despertadores e os pôs a cantarolar de duas em duas horas. Estavam escondidos em diferentes locais do quarto. – explicou Margarida.
O padre Fontes soltou uma valente gargalhada e exclamou:
- Que madrugada!
- Se foi. – anui – Também eu achei piada e a Margarida quase se aborrecia comigo por causa disso.
- Claro. Divertias-te à brava porque não eras tu que tinhas de te levantar e apanhar frio. – justificou-se Margarida.
- Aguardavas que eles se calassem. – opinei.
- Eram dos que demoram tempos infinitos a perderem o pio. – argumentou Margarida.
- Fazias como eu, cobrias a cabeça e ignoravas o ruído. – sugeri com uma meiga ironia, pois sabia que a minha esposa não gostava de sentir a boca nem o nariz tapados pela roupa.
Neste interim, o padre Fontes interveio:
- Tenho que ir para Migas. Obrigado pelo jantar.
- Obrigado nós pela sua presença sempre amiga no nosso meio. – agradecemos.
Ouvimos os passos que se afastavam. Ouvimos o portão a fechar-se. Ouvimos o crepitar da lenha provocado pelo lume no fogão.
Deve ser lindo o fogo, pensava eu.
- Em que pensas? – perguntou-me Margarida.
- Que deve ser fascinante contemplar essas chamas.
- Podes crer que sim. Estão muito vermelhas e vivas. – descreveu-me com carinho e, afagando-me as faces, acrescentou: – Não fiques triste.
Beijei-a.
- Não me entristeço, mas neste momento deu-me cá uma saudade dos tempos em que vi. Foi mais forte do que eu.
A si, amigo leitor, permita-me que me confesse. Nunca me custou aceitar a cegueira. Aprendi a conviver com ela como uma coisa minha; uma coisa que me pertence e que jamais alguém me há-de tirar. Em muitas ocasiões da minha vida tem sido uma companheira fiel, uma aliada incondicional da minha vontade. É que, às vezes, também dá muito jeito não se ver aquilo que não nos convém. No entanto, é duro, demasiado duro, olhar e não se ver o rosto de nossa mãe, de nosso pai, de nossos irmãos, de nossos amigos. É duro, quase desumano, olhar a cada instante e não se ver o rosto da mulher que amamos até o raiar da loucura.
Um fortíssimo aguaceiro, acompanhado por um ruidoso trovão, veio arrancar-nos daquele torpor. Entretanto, as chaminés tinham cessado de fumegar. Marmelitos já se havia recolhido nos seus aposentos. Daí a poucas horas viria a aurora e despontaria um novo dia. Iriam novamente cantar os galos, mugir as vacas e chilrear os pássaros. As ruas encher-se-iam de mais algum movimento e far-se-ia ouvir essencialmente as motorizadas a subirem e a descerem o monte, em direcção aos empregos. Os mais velhos ainda têm os seus pedacitos de terra que amanham com esmerado afinco, que o confirme o Sr. Germias, figura carismática daquelas pacatas paragens. Com 65 anos de idade, só à noitinha pára para descansar. Dedicou grande parte da sua existência a zelar pelos interesses da paróquia e a servir a sua patroa.
- Oh, Sr. Germias, quer almoçar amanhã connosco? – repetíamos constantemente o convite.
A resposta é que era quase sempre a mesma:
- Não posso. Tenho gente lá em casa.
Tem a patroa e a família da patroa como a sua própria família e atrás dos seus fatigados passos vão sempre o Pateta, um cachorro irrequieto na flor da cachorrice, e o Pep, um cão pacato nas bordas da velhice.
Pateta corria com a linguita de fora. Corria, saltava alegremente e pulava para caçar as moscas que voavam mais rasas. Pep, por seu turno, assistia impávido e sereno a tudo aquilo, mas Pateta não gosta de brincar sozinho. Olha para o outro com ar de incompreensão por tamanha molenguice. As coisas têm que mudar e Pateta é persistente. Não esteve com meias medidas. Num ímpeto juvenil pôs-se ao lado do companheiro e mordeu-lhe a orelha. Pep não se mostrou deveras incomodado com tal provocação e, apenas soltou um pequeno ronco, voltou à posição inicial. Pateta não se deu por satisfeito e insistiu. Pep levantou preguiçosamente a pata e atingiu levemente o parceiro no focinho. Pateta virou-lhe as costas e, olhando para nós, ladrou, como que a dizer:
«Não faltarão outras oportunidades».
E o cachorro lá continuou nas suas traquinices até que de súbito estacou defronte do fogão onde deparou com a sua imagem aí reflectida e logo desatou a ladrar, irritado. Margarida, ao aperceber-se da ocorrência, afirmou:
- Pateta não gostou de se ver ao espelho.
E eu galhofei:
- Pudera, julgava-se filho único e surpreendeu-se por descobrir tão bruscamente que tem um irmão gémeo.
O Sr. Germias Já estava de saída.
- Boa noite e até amanhã. – disse ele.
E nós retribuímos.
Após o ancião ter-se ido embora, Margarida comentou;
- É uma boa alma.
- Como poucas. Tem a preocupação diária de nos trazer o pão de manhã e de se certificar no final de cada tarde se estamos bem. Que Deus o recompense.
- Preciso de ir ao nosso quarto. Venho já.
Fiquei a escutar Margarida a distanciar-se.
“Será que a farei feliz? Far-me-á ela também feliz? Só o futuro conhece a resposta, mas tem-na bem guardada no cofre do imprevisto”, meditava eu.
Uma semana antes, naquele grandioso entardecer de 14 de Janeiro de 1996 perto duma centena de pessoas vestiram as suas melhores fatiotas domingueiras e dirigiram-se para a capela da Nossa Senhora do Caminho, na Tremoceira. Pairava no ar e nos corações dos convidados uma mal contida excitação.
- O noivo chegou. – anunciou alguém.
E a noiva já lá estava, nervosa e preocupada porque eu me atrasara. Falhas toleráveis a quem se casa pela primeira vez.
Entrámos na capela entapetada a gosto e perfumada com os primores oferecidos pela mãe natureza. O padre Fontes e o padre Alves ocuparam os seus lugares no altar. O momento crucial aproximava-se a passos largos. A multidão ali presente apurava os ouvidos na expectativa de captarem o eminente sim. E um sim determinante e definitivo saiu com naturalidade. Foi um sim ao amor na saúde e na doença, na prosperidade e na provação, na alegria e na tristeza, em todas as horas da nossa vida.

(inserto no livro “Centelha de Vida” de Américo Lisboa Azevedo)

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Notas Soltas 1

Segue o primeiro “Notas Soltas” que são pequenos textos da minha autoria.

Pertencemos a uma sociedade englobalizadora. Pelo menos os nossos governantes emanam directivas nesse sentido para que a sociedade em que vivemos seja de direitos e deveres iguais para toda a criatura que a compõe.
Pena é que os deficientes que querem ter uma vida intervencionista na sociedade tenham dificuldades em chegar a certos pontos que, um cidadão dito “normal” nem sequer pensam nessas barreiras.
Mais tristeza é uma pessoa querer ser o mais autonomamente possível e o não conseguir, não por falta de compromisso consigo próprio, mas por conjunturas alheias à sua vontade que impede a pessoa de chegar ao objectivo a que se propõe.
Por exemplo: ir fazer um levantamento monetário pode revelar-se uma verdadeira odisseia. E dependendo da deficiência, pode até tornar-se numa situação impossível.
A sociedade tem feito progressos mas compete-nos a nós deficientes, sair do conforto do nosso cantinho e reivindicar, não através de palavras, mas sim fazendo sentir a nossa presença para que sejamos vistos a participar na vida da comunidade a que pertencemos.
Assim, e só assim, é que as barreiras da nossa sociedade se vão esbatendo.

Adolfo Ribas