quarta-feira, 5 de maio de 2010

PARA LÁ DO QUE A JANELA MOSTRA

Foi só hoje que partiste e já tenho saudades de ti, Pedro.
Depois de termos estado internados nesta mesma enfermaria de duas camas, recordo, com profunda gratidão, tudo o que partilhámos e o que de mais belo me ensinaste.
Estávamos ambos gravemente enfermos.
Eu tenho de permanecer constantemente de costas e de olhar fito num tecto que se perde num branco sufocantemente doentio, pois não consigo sequer rodar o pescoço um milímetro que seja. A ti, os médicos autorizavam-te a sentares-te na cama, por alguns minutos, três vezes ao dia.
O teu leito ficava do lado da única janela do quarto.
Conversávamos horas a fio acerca de tudo e de nada. Mas sobretudo, recordávamo-nos dos tempos de saúde, das nossas mulheres e filhos.
As nossas doenças atiraram-nos para um destino comum de dor e de permanência indefinidamente prolongada, sem esperanças de regressar a casa.
E com o decorrer dos anos, se alguma réstia de esperança havia, foi-se esboroando por inteiro.
Progressivamente, até as nossas famílias reduziram a frequência das visitas.
- Ai Pedro, há tantas semanas que não vejo a minha Rosa e os meus filhos. – suspirava eu.
- Eu cá já nem me lembro bem da última vez em que a minha Célia e o meu Filipe cá vieram.
- Dói-me tanto sentir que se foram cansando de me verem assim. Perder a saúde já é muito pesado, mas estar sem ver os que mais amo...
- De nada nos adianta curtir mágoas e alimentar sofrimentos maiores. Encaremos a vida que nos resta agradecendo o facto de nos termos, um ao outro, por companheiros do mesmo barco. – aconselhaste-me com voz serena e apaziguadora.
- É, tens razão, Pedro. Vivamos esta viagem juntos, enquanto tal for possível. – aquiesci.
Após um curto silêncio, pedi-te:
- Faz-me um favor, prime a campainha. Necessito que a enfermeira me dê de beber.
- Prepara os ouvidos, Tomé. Ainda há pouco trouxe-me a aparadeira e vai já reclamar contigo.
- Eu sei... mas já estou habituado aos seus protestos; não sei é sofrer com sede.
E assim foi. A enfermeira Sofia não perdeu a ocasião para resmungar a ladainha do costume:
- Ai Sr. Tomé, Sr. Tomé, sempre se lembra de ter sede a cada hora! Eu já estou de saída.
- Porém, eu sempre cá fico e não escolho as horas para satisfazer as minhas necessidades básicas. De mais a mais, entre a sua saída e a entrada da sua colega tenho mais de trinta minutos de espera. E se aguardo pela mudança de turno, a enfermeira Joana vai logo rezingar: “Estava mesmo à esperinha que eu entrasse ao serviço”! Já pensaram que se respingassem menos e se se preocupassem em cuidar de nós com mais humanismo contribuíam mais para atenuar o nosso desconforto e era-vos bem mais agradável cumprir a vossa missão?
A mulher de branco retirou-se, impávida, como quem nada escutou ou observou de novo.
- Bem que te avisei que ias ouvir. – reafirmaste tu.
- Mal por mal, prefiro que a mulher refile do que entre e saia da enfermaria como se não tivesse língua e sempre com a mesma expressão de enfado e de indiferença por nós.
- Lá nisso concordo plenamente contigo. Também detesto ser ignorado ou tratado como um fardo inútil arremessado para um canto até que apodreça e feda.. – galhofaste tu, provando-me que os longos anos de doença segregadora ainda não te tinham surripiado a capacidade de rir e de fazer rir.
- Mas desesperante e desolador é o Dr. Feliz-Morte estar vários dias sem nos visitar e, quando o faz, fazê-lo de relance, como se temesse ser contagiado. Só aquele distante e frio olhar com que nos fita sem nos fitar confirma o fim que nos aguarda. – opinei.
- É lamentável que nunca lhe tenham ensinado que enquanto não morremos estamos vivos. – comentaste.
- Infelizmente, o doutor não está nada longe da verdade. – disse-te eu, em tom de resignação.
- Talvez; porém, enquanto acordar estou vivo! Enquanto puder sonhar não me cortem as asas do sonho! – redarguiste com uma perseverança e energia que sempre foram superiores às minhas. – Enquanto puder, não abdico de presenciar o nascer do sol.
- Por falares nisso... O que vês hoje através da tua janela? – questionei-te, ansioso por escutar as tuas preciosas descrições.
- Aguenta um pouquinho. Deixa-me soerguer e acomodar-me com jeito. A minha coluna hoje quer que a trate com toda a delicadeza. – gracejaste.
- Se não te sentes com forças, não te sacrifiques demasiado por minha causa. – tranquilizei-te.
- Se não nos esforçarmos por confortarmo-nos e alentarmo-nos um ao outro, por quem o faremos e quem o fará por nós?
Após várias tentativas fracassadas para te soergueres, acabaste por vencer mais uma vez.
- Temos o mar calmíssimo. – principiaste.
- Daqui vês o mar? – considerei, deveras surpreendido. – Nunca supus este hospital junto ao oceano.
- É. E vai a passar um navio e pêras! – acrescentaste.
- Nunca viajei de barco. – confessei. – Deve ser fascinante!
- Acredita que sim, Tomé.
- Viajaste muitas vezes?
- Sim. Cumpri o serviço militar na marinha. É delirante estarmos entre céu e mar e nada mais vermos à nossa volta.
- Apanhastes alguns sustos? – perguntei.
- Pouquíssimos. Mais no início. Com a falta de experiência, apavorava-me nas tempestades ver ondas enormes cobrir-nos o barco de água.
- E não quiseste seguir carreira?
- Até queria, mas tinha em terra o amor de Célia e o Filipe a quatro meses de nascer. A vida de marinheiro não me permitiria estar sempre perto deles os dois.
- Todavia, há algo que me intriga, Pedro.
- Como assim?
- As maravilhosas e diversificadas paisagens que vislumbras dessa janela. O mar; os belos jardins e lagos; as graciosas noivas a entrarem na igreja; os bandos de pássaros que, ora se libertam, ora se recolhem às verdes árvores.
- Lá fora há sempre novidades e uma vida boliçosa. No jardim que ladeia o lago vicejam as primeiras flores desta Primavera e um par de namorados trocam carícias e palavras poeticamente amorosas.
- E como está o casal de cisnes brancos?
- Vogam imponentes pela água calma e límpida. O cisne pavoneia-se a cortejar a fêmea, que dá mostras de desinteressada, mas traz um olharzinho de quem se apresta para mergulhar no peito do seu amado.
- Que lindo! – exclamei.
- Atenta nas gargalhadas das crianças. – sugeriste-me.
Pus-me à escuta.
- É estranho, mas os meus ouvidos já não alcançam nem a alegre algazarra da miudagem. – disse-te, pesaroso, pois aquela constatação era mais uma prova que o meu ser cada vez estava mais confinado à asfixiante estreiteza e finitude daquela enfermaria.
- A rapaziada corre, salta, ri, grita e canta por entre os canteiros e as pombas que esvoaçam em cruzeiros sem rotas, desenhando no azul do céu graciosas cataratas de vida e liberdade.
E decorriam dias, meses e anos.
Com a vivacidade que punhas nas tuas coloridas e sonoras descrições, numa tarde até acreditei escutar as notas musicais soltadas pelos instrumentos de uma filarmónica que tu dizias ver marchar na calçada.
Entretanto, ontem, manhã serena e clara, a enfermeira Jacinta só encontrou o teu corpo hirto; a tua alma voara já rumo a uma liberdade por ti sonhada e, que de agora em diante, jamais loquete algum ousaria agrilhoar.
A enfermeira Jacinta fitou no meu, o seu olhar húmido.
Foi por entre lágrimas cintilantes que afirmou:
- O Pedro partiu e deixou-nos uma terna recordação.
E pegando no seu espelho pessoal, indicou-me:
- Olhe para aqui, Tomé.
E chorámos os dois ao vermos ali o suave sorriso com que nos brindaste na hora da tua maior vitória.
E descoberta das descobertas. Uma enfermeira também se comove e é capaz de chorar..
- Sabe uma coisa, enfermeira Jacinta?
- Diga lá, Tomé.
- Apetecia-me dar-lhe um grande beijo.
- A mim? Porquê?
- Há tantos anos que aqui estou e nunca antes vira o vosso lado humano. Pareceis sempre tão indiferentes ao sofrimento. Estais tão distantes de nós; tão longe das nossas angústias e medos. Será que vos passa pela cabeça que temos sentimentos, esperanças e sonhos? Será que nos considerais míseros doentes ou nos tendes como pessoas com direitos e deveres?
- Não é nada fácil tratar de doentes.
- Tentai antes cuidar de nós como pessoas que estão doentes e não de doentes que deixaram de ter o estatuto de pessoa apenas porque a saúde nos abandonou temporária ou definitivamente no conceito meramente clínico da palavra. – argumentei.
- Mas, para nós, se um doente não for clinicamente curado, o nosso esforço foi um fracasso.
- Tendes de ter e de nos ajudardes a termos horizontes mais largos em relação ao conceito de cura.
- Como assim?
- É preciso que compreendais que quando a cura física não é possível, essas feridas abertas podem e devem ser fonte de crescimento espiritual.
- Julgo não entender bem.
- Se a pessoa que está doente descobrir que o seu ser não é só carnal mas também, e essencialmente, espiritual, vai perceber que a sua vida não se confina às amarras de um corpo, mas que ganha asas para voar sem limites.
- Desculpe lá, Tomé, mas esta conversa está a tornar-se demasiado filosófica para os meus 65 outonos. – desculpou-se.
Aproveitei aquele momento mais sensível da mulher de branco para formular-lhe o desejo de, logo que possível, ser transferido para a que fora a tua cama.
- Sim, Tomé; eu própria encarregar-me-ei de satisfazer esse seu desejo.
- Ficar-lhe-ei muito grato.
- Seria muita curiosidade de minha parte se lhe perguntar o porquê desse seu veemente rogo?
- Não, esteja à vontade.
E, ao explicar-lhe como as tuas belas descrições, fruto do que visualizavas através da janela, me aqueciam o coração, observei que, a cada palavra que eu ia proferindo, a enfermeira Jacinta estremecia e o seu delgado rosto se contraía num esgar de surpresa e de angústia crescente.
- Não se está a sentir bem, senhora enfermeira?
- Estou muito impressionada com o que o Tomé acabou de contar.
- Ora essa! Então, porquê?
- Bom... é que... o Pedro era cego!
- Era cego?!
- Sim, Tomé! E a juntar à sua cegueira, diante da janela apenas existe um muro alto que nada deixa ver para o exterior, além de uma nesga de céu.
Agora fui eu quem estremeceu.
Ó Pedro, Pedro, tu eras cego! E eu, mais cego fui por, ao longo de tantos anos de uma convivência que julgava extremamente tão próxima, nunca detectar que os teus olhos nada viam e que tanto me fizeram ver para lá do que a janela mostra.
Obrigado, Pedro, por teres sido capaz de sonhar e de me fazeres sonhar

(Américo Azevedo, in “Sonho Acordado”)

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