sexta-feira, 2 de abril de 2010

O AMOR TUDO VENCE

A casa de pedra granítica lá estava imponente e austera no cimo do monte. As janelas abertas de par em par e o portão de ferro a ranger prolongadamente nos gonzos. Falta de óleo, falta de uso.
- Temos visitas. – anunciei.
- É o padre Fontes. – acrescentou Margarida que se apressara a abrir a porta.
- Posso entrar?
- É claro que sim, padre Fontes. A casa é sua. – acudi eu familiarmente.
- Como estão a ser essas núpcias?
- Boas. Marmelitos é uma terra de gente acolhedora e esta casa, apesar de bastante antiga, é excelente para os primeiros dias duma vida a dois. - informei com um sorriso.
- E não vos cansais de cá estar?
- Por mim ficava cá sempre. – atalhava Margarida.
- E eu também. – concordei.
- Estou espantado. – galhofou o padre Fontes, sorrindo de satisfação por nos ver felizes.
- Quer jantar connosco? – convidámos simultaneamente.
- Aceito de bom grado.
O padre Fontes é daqueles pastores que conhece cada uma das suas ovelhas pelo seu nome e as guia pelos caminhos da vida com abnegada dedicação e ardente ternura.
- E tendes passado por muitas aventuras? – quis ele saber.
- Algumas, algumas. – respondemos a uma voz.
- Ainda esta noite nos choveu na cama. – adicionei.
- E depois? – riu-se o padre Fontes.
- Tive de arrastar a cama. – queixou-se Margarida.
- E o mais engraçado é que assim que desviaste a cama o pingante cessou de cair. – pormenorizei.
- E a Fidélia que trouxe quatro despertadores e os pôs a cantarolar de duas em duas horas. Estavam escondidos em diferentes locais do quarto. – explicou Margarida.
O padre Fontes soltou uma valente gargalhada e exclamou:
- Que madrugada!
- Se foi. – anui – Também eu achei piada e a Margarida quase se aborrecia comigo por causa disso.
- Claro. Divertias-te à brava porque não eras tu que tinhas de te levantar e apanhar frio. – justificou-se Margarida.
- Aguardavas que eles se calassem. – opinei.
- Eram dos que demoram tempos infinitos a perderem o pio. – argumentou Margarida.
- Fazias como eu, cobrias a cabeça e ignoravas o ruído. – sugeri com uma meiga ironia, pois sabia que a minha esposa não gostava de sentir a boca nem o nariz tapados pela roupa.
Neste interim, o padre Fontes interveio:
- Tenho que ir para Migas. Obrigado pelo jantar.
- Obrigado nós pela sua presença sempre amiga no nosso meio. – agradecemos.
Ouvimos os passos que se afastavam. Ouvimos o portão a fechar-se. Ouvimos o crepitar da lenha provocado pelo lume no fogão.
Deve ser lindo o fogo, pensava eu.
- Em que pensas? – perguntou-me Margarida.
- Que deve ser fascinante contemplar essas chamas.
- Podes crer que sim. Estão muito vermelhas e vivas. – descreveu-me com carinho e, afagando-me as faces, acrescentou: – Não fiques triste.
Beijei-a.
- Não me entristeço, mas neste momento deu-me cá uma saudade dos tempos em que vi. Foi mais forte do que eu.
A si, amigo leitor, permita-me que me confesse. Nunca me custou aceitar a cegueira. Aprendi a conviver com ela como uma coisa minha; uma coisa que me pertence e que jamais alguém me há-de tirar. Em muitas ocasiões da minha vida tem sido uma companheira fiel, uma aliada incondicional da minha vontade. É que, às vezes, também dá muito jeito não se ver aquilo que não nos convém. No entanto, é duro, demasiado duro, olhar e não se ver o rosto de nossa mãe, de nosso pai, de nossos irmãos, de nossos amigos. É duro, quase desumano, olhar a cada instante e não se ver o rosto da mulher que amamos até o raiar da loucura.
Um fortíssimo aguaceiro, acompanhado por um ruidoso trovão, veio arrancar-nos daquele torpor. Entretanto, as chaminés tinham cessado de fumegar. Marmelitos já se havia recolhido nos seus aposentos. Daí a poucas horas viria a aurora e despontaria um novo dia. Iriam novamente cantar os galos, mugir as vacas e chilrear os pássaros. As ruas encher-se-iam de mais algum movimento e far-se-ia ouvir essencialmente as motorizadas a subirem e a descerem o monte, em direcção aos empregos. Os mais velhos ainda têm os seus pedacitos de terra que amanham com esmerado afinco, que o confirme o Sr. Germias, figura carismática daquelas pacatas paragens. Com 65 anos de idade, só à noitinha pára para descansar. Dedicou grande parte da sua existência a zelar pelos interesses da paróquia e a servir a sua patroa.
- Oh, Sr. Germias, quer almoçar amanhã connosco? – repetíamos constantemente o convite.
A resposta é que era quase sempre a mesma:
- Não posso. Tenho gente lá em casa.
Tem a patroa e a família da patroa como a sua própria família e atrás dos seus fatigados passos vão sempre o Pateta, um cachorro irrequieto na flor da cachorrice, e o Pep, um cão pacato nas bordas da velhice.
Pateta corria com a linguita de fora. Corria, saltava alegremente e pulava para caçar as moscas que voavam mais rasas. Pep, por seu turno, assistia impávido e sereno a tudo aquilo, mas Pateta não gosta de brincar sozinho. Olha para o outro com ar de incompreensão por tamanha molenguice. As coisas têm que mudar e Pateta é persistente. Não esteve com meias medidas. Num ímpeto juvenil pôs-se ao lado do companheiro e mordeu-lhe a orelha. Pep não se mostrou deveras incomodado com tal provocação e, apenas soltou um pequeno ronco, voltou à posição inicial. Pateta não se deu por satisfeito e insistiu. Pep levantou preguiçosamente a pata e atingiu levemente o parceiro no focinho. Pateta virou-lhe as costas e, olhando para nós, ladrou, como que a dizer:
«Não faltarão outras oportunidades».
E o cachorro lá continuou nas suas traquinices até que de súbito estacou defronte do fogão onde deparou com a sua imagem aí reflectida e logo desatou a ladrar, irritado. Margarida, ao aperceber-se da ocorrência, afirmou:
- Pateta não gostou de se ver ao espelho.
E eu galhofei:
- Pudera, julgava-se filho único e surpreendeu-se por descobrir tão bruscamente que tem um irmão gémeo.
O Sr. Germias Já estava de saída.
- Boa noite e até amanhã. – disse ele.
E nós retribuímos.
Após o ancião ter-se ido embora, Margarida comentou;
- É uma boa alma.
- Como poucas. Tem a preocupação diária de nos trazer o pão de manhã e de se certificar no final de cada tarde se estamos bem. Que Deus o recompense.
- Preciso de ir ao nosso quarto. Venho já.
Fiquei a escutar Margarida a distanciar-se.
“Será que a farei feliz? Far-me-á ela também feliz? Só o futuro conhece a resposta, mas tem-na bem guardada no cofre do imprevisto”, meditava eu.
Uma semana antes, naquele grandioso entardecer de 14 de Janeiro de 1996 perto duma centena de pessoas vestiram as suas melhores fatiotas domingueiras e dirigiram-se para a capela da Nossa Senhora do Caminho, na Tremoceira. Pairava no ar e nos corações dos convidados uma mal contida excitação.
- O noivo chegou. – anunciou alguém.
E a noiva já lá estava, nervosa e preocupada porque eu me atrasara. Falhas toleráveis a quem se casa pela primeira vez.
Entrámos na capela entapetada a gosto e perfumada com os primores oferecidos pela mãe natureza. O padre Fontes e o padre Alves ocuparam os seus lugares no altar. O momento crucial aproximava-se a passos largos. A multidão ali presente apurava os ouvidos na expectativa de captarem o eminente sim. E um sim determinante e definitivo saiu com naturalidade. Foi um sim ao amor na saúde e na doença, na prosperidade e na provação, na alegria e na tristeza, em todas as horas da nossa vida.

(inserto no livro “Centelha de Vida” de Américo Lisboa Azevedo)

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